sexta-feira, agosto 05, 2005

Reflexo

Devo mergulhar mais fundo? Não havendo qualquer tipo de reação, tentemos outra vez.

Nosso protagonista, que andava meio grilado, logo retoma o rumo de sua vida, e não presta mais tanta atenção aos grilos. Agora ele vive sua vida um dia de cada vez, e todo dia vai dormir quase em paz. Os grilos já não cantam mais tão alto. A vida passa e todo interior está frio e cinzento. Apaziguado. Um silêncio calmo reverbera pelos cantos de sua casa e nosso protagonista decide voltar ao quarto do cotidiano, o único cômodo da casa que contém espelhos. Espelhos que refletem sua imagem, sua alma, suas fechaduras e respectivas chaves. Mas ao invés de uma só imagem, para ele, cada espelho parece refletir diferentes faces de si mesmo, reflexos tão reais e diversos, que nosso protagonista chega ao ponto de achar que se trata de outras pessoas, e não dele mesmo. Em um dos espelhos, nosso protagonista vê seu pai, no outro, sua mãe, e por aí vai...padrasto, amigos, mulheres de sua vida, monstros, anjos, santos e deuses. Ele fica tanto tempo no quarto, que começa a se relacionar com as imagens, acreditando serem entes reais (isso porque ele ainda acredita que aparência e realidade são coisas completamente diferentes, e não sabe que o virtual é tão real quanto a realidade). Logo se esquece que todos os espelhos refletem somente a si mesmo e passa assim a julgar, discordar, ignorar e dissociar de si mesmo os reflexos que não lhe agradam. Assim, separa seu eu do resto do mundo e fica só. Mas ainda assim, ele tenta de todas as maneiras se relacionar, manter seus relacionamentos controlados e agradáveis, mas invariavelmente falha. E volta a ficar só. Assim ele vai, até chegar ao ponto de desistir e ficar sozinho. - Chega! Não aguento mais essas pessoas que só me fazem mal. Vou ficar sozinho, não é essa a natureza última do ser humano? Assim, nosso protagonista fica só. Mas a história não acaba por aí. Em um dado momento, depois de passar por toda a solidão, ele fica com sede de amor e decide entrar no poço escuro que se encontra no meio do quarto do cotidiano a procura de água que saceie toda sua sede. Em sua determinação, ele pula sem pensar e vai de cabeça no fundo do poço e desmaia. Ao acordar, se dá conta de que a água está quase acabando, e no reflexo da água, vê novamente seu reflexo. O poço está quase seco, de tantas vezes que foi lá retirar água. Assim, nosso protagonista resolve escalar de volta. Ele chega no topo rapidamente e se vê de novo no quarto do cotidiano. Ao se voltar novamente para os espelhos, lembra-se que aquelas imagens refletem unicamente a si mesmo. E sorri. Sorri para todas as imagens e, consequentemente, para si mesmo. E faz as pazes com todos os aspectos de seu próprio ser. Ele enfim se dá conta que, no fundo, só há relacionamentos consigo mesmo, e passa a dar valor ao que é refletido, mas somente como sendo parte de si mesmo. Finalmente se dá conta de que todo reflexo apenas projeta sua própria imagem, e que deve se relacionar, não tanto com as pessoas, mas com o que elas despertam em si.

Assim como o quarto de espelhos, este texto, e todos os outros, são uma projeção, não da vida de nosso protagonista ou qualquer outro leitor, mas de quem o escreve, e assim, não há porque se relacionar com o texto, mas com o que é despertado em sí.

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