sábado, novembro 10, 2007

A CAVEIRA DA CIDADE MARAVILHOSA

Em última análise (sim, começarei pelo fim), não se trata de aceitar ou não a Realidade como ela é. Quer você aceite quer não, a realidade é como ela é e ponto final.

A Ética trata daquilo que “deve ser” assim ou assado. A política também. Por isso não são nem nunca serão autênticas disciplinas filosóficas. A tarefa do filósofo (pelo menos o que entendo por verdadeiro amor à sabedoria) é conhecer as coisas como elas são, sem julgar. A Filosofia trabalha com o Ser, não com o que “deve ser”. No entanto, não há nada que o ser humano adore mais do que falar em ética e afirmar como as coisas deveriam ser. Ironicamente, não há nada que ajude mais a manter o véu da ignorância e da ilusão do que este hábito infernal. Os verdadeiros sábios sempre souberam disto. Dito isto, comecemos.

Não acredito que ninguém que viu o filme “Tropa de Elite” em sã consciência acha que o Bope é a solução para a corrupção na polícia e nem para o tráfico de drogas. Muito menos aprova seus métodos como única alternativa contra o mal. Mas se a polícia mata muito, o crime organizado mata trinta vezes mais. O Bope é produto de inúmeros fatores que deram origem à cidade tal qual estamos vivendo hoje. É apenas a ponta do iceberg, assim como o é o traficante favelado. No entanto, a maioria da população já fez a sua escolha: prefere o Capitão Nascimento a qualquer bandido. Se você tivesse que escolher entre o Capitão Nascimento ou o Baiano para ser o novo namorado da sua filha, quem você escolheria?

Ao longo do filme, várias cenas provocam a famosa catarse no publico, inclusive a última, mas assim que sobem os créditos e o espectador não sabe se levanta da cadeira e vai pra casa ou se esconde debaixo da poltrona até que o Bope venha lhe salvar, o sentimento de catarse já não existe mais. Não há alívio ao final de Tropa de Elite. Quem toma o tiro de 12 no final somos nós. Matias aponta o fuzil para a caveira do espectador na mesma hora em que se transforma em um verdadeiro policial do Bope. Padilha (ou pelo menos alguém, acredito eu) sabia exatamente o que estava fazendo. Somos nós – não o Baiano, que em seu último segundo de vida e atuação no filme fecha os olhos para não ver a realidade – que ficamos de olhos bem abertos, assistindo ao espetáculo da destruição de nosso sono dogmático, como Kant após compreender o ceticismo radical de Hume, ou ainda como nós mesmos assistindo pela TV ao desmoronamento das torres gêmeas. A lógica do filme (e da realidade hoje) é simples: vivemos em uma cidade em guerra civil permanente. Ou seja, não importa se a bala virá de um lado ou do outro, vai sobrar tiro pra geral, parceiro.

Parte da culpa da existência mesma deste filme como um retrato fiel – ainda que seja uma obra fictícia – da realidade do Rio de Janeiro se deve à divulgação pesada do pensamento dos grandes mestres da suspeita, Nietzsche, Freud e Marx. Estamos todos intoxicados desta merda. Não é à toa que em uma das cenas do filme os dois primeiros autores sejam indicados pelo professor universitário “da melhor universidade de direito do país” do filme como bibliografia para os seus alunos burgueses. Padilha sabia o que estava fazendo. É praticamente só o que se ensina, por exemplo, no curso de Filosofia da PUC-Rio, uma das (se não for a melhor em determinados cursos) “melhores universidades do país”, locação de todas as cenas na universidade do filme, exceto esta da sala de aula. Quem não está intoxicado com esta merda é maldito e corre perigo constante de perder o emprego. Se já não perdeu. Padilha só enfiou o Foucaut e não o nome “Karl Marx” junto com os outros no quadro negro da sala de aula porque felizmente previu as conseqüências desta escolha. Seria criar mil vezes mais polêmica estúpida no vasto território de discussão da mídia e das universidades do país. Muito obrigado senhor Padilha.

Quando uma sociedade chega ao ponto em que todos os valores humanistas e religiosos são diariamente atacados, deturpados e negados, a execução de qualquer bandido – seja ele favelado ou não – pelo Bope é aplaudida de pé pela maioria esmagadora dos milhões de espectadores do filme, ainda que sejam utilizados recursos dramatúrgicos para tal. Quero ver algum roteirista conseguir criar um filme em que a platéia inteira veja Hitler como mocinho.

Perigosa não é a ideologia do filme ou do Capitão Nascimento. Perigoso é não enxergar o óbvio que está apontado para a nossa cara. Entre vitimizar criminosos sanguinários e culpar o capitalismo pela violência ou aceitar o Bope como a última fronteira que nos separaria de uma cidade totalmente entregue ao domínio absoluto do crime organizado, fico com o Bope. Caveira!

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